preocupações correntes
tive de fazer este exercício porque tenho demasiada coisa a embrulhar-me a mente, a tirar-me o sono e não consigo falar. por um lado sei que estas coisas são pouco importantes e não quero incomodar as pessoas à minha volta. por outro, se não o fizer (ou quando não o faço), chego a um ponto de ruptura como aconteceu esta semana que passou.
estive um ano a trabalhar num departamento sem me sentir reconhecida. é um departamento com má reputação pela aparente desorganização e, como cheguei a ouvir, pela "pouca produtividade". como membro e representante desse departamento nunca me senti ouvida nem compreendida. nunca ninguém se sentou para entender as nossas dores e como a empresa poderia ajudar para melhorar o nosso trabalho. uma vez que o departamento lida com tarefas fáceis, toda a gente parte do princípio de que "temos uma tarefa para fazer e fazê-mo-la mal". contudo, não é bem assim. aquele trabalho não consiste em estar exclusivamente sentado à frente de um computador e com auscultadores na cabeça a ouvir a nossa música preferida, concentrados no nosso trabalho e alheados do resto da empresa. aquele departamento é o centro nevrálgico do edifício que, literalmente, toda a gente procura para qualquer coisa. as interrupções ao longo do dia são constantes e sempre me foi impossível terminar qualquer tarefa de uma vez só. o meu único colega durante meses demonstrava uma atitude preguiçosa e hesitava em fazer certos tipos de trabalho. faltou por doença diversas vezes (algumas por desleixo) e procurou imensas vezes razões para ir embora a meio dia dia. tive de me desdobrar ainda mais para fazer o trabalho, para fazer horas extra e ainda trabalhar a partir de casa durante o fim de semana.
em janeiro chegou uma pessoa que deveria coordenar a nossa equipa. uma das coisas que logo compreendeu foi a atitude do colega, a indisponibilidade e desinteresse em fazer certas coisas e a inaptidão para fazer tantas outras. e protegeu-me. mas protegeu-me sem nunca o corrigir. e ele foi fazendo cada vez menos, reduzindo-se a uma única tarefa - aquele que ele queria exactamente.
a minha frustração foi crescendo e a minha paciência diminuindo. não só com ele mas sobretudo com a coordenadora e a directora da empresa. por não se impor e não criar ordem. e apesar de nunca me ter calado com esta falta de acção, nada nunca mudou. a directora tinha compreendido a minha preferência por trabalho de backoffice e mencionou mudanças estruturais que conseguiam acomodar este meu desejo. contudo, eu mantive-me nas mesmas funções e o meu colega é que, de mansinho, ficou com as funções que, na minha cabeça, estavam destinadas a mim.
saí do departamento com um sentimento de inutilidade, de pouco reconhecimento e que tudo o que havia ali feito tinha sido em vão. que havia tanto mais para fazer e organizar. todos os dias corria de um lado para o outro, entretida com as minhas tarefas e sabendo que o trabalho nunca escassearia por esta necessidade de melhoria constante. mas estava a matar-me saber que nem todos estavam a bordo e que nem todos participavam nem queriam saber da mesma forma que eu. matava-me a ideia ser eu a pessoa com processos a desenvolver mas ser eu a fazer todo o trabalho diário sem poder desenvolver e dar luz a estas ideias. e deixei de trabalhar horas extra e deixei de trabalhar a partir de casa pelos 750 € de salário base que recebo, pelas 3 horas diárias de transporte público que me moem e as noites em branco pela preocupação constante de que estou a fazer um trabalho insatisfatório e pelo barulho nocturno que os vizinhos produzem.
saí do departamento para outro em plena "época alta", com imenso trabalho e processos a despachar. vantagem? estar sentada sem ser constantemente interrompida e conseguir levar a cabo as minhas tarefas. em dois meses ganhei fama de pessoa competente e organizada. em equipa, com a pessoa que considero minha coordenadora (apesar de não ter título, vejo-a dessa forma) conseguimos despachar cerca de 150 a 200 processos no espaço de 3 meses e fomos reconhecidas com um prémio monetário. ela foi ligeiramente aumentada (que tardou tendo em conta o suor que ela colocou na empresa desde o início) mas comigo ninguém falou.
neste momento sinto-me prostrada pelo abrandamento do volume de trabalho e que me tem dado mais tempo para sentir a inutilidade das minhas tarefas e de que forma é que o trabalho que faço faz a diferença. para que serve aquilo que faço? a quem ajudo? porque a longo termo sei que vou ficar presa a tarefas administrativas, a lamber papel, sem poder de decisão e dependente de outros para o terminar. sei que sou capaz de mais mas dou por mim constantemente no mesmo tipo de trabalho que não me preenche de forma nenhuma.
sou a primeira a apregoar que o trabalho não devia ser assim tão importante na vida mas a realidade é que lá estamos uma grande parte do nosso dia.
trabalho numa empresa em que há uma divisão entre staff português e staff estrangeiro. estes têm salários mais altos e regalias como quarto ou apartamento, escola dos filhos, festinhas aqui e acolá a horas a que o staff português, que trabalha das 9h às 18h não pode comparecer. é certo que as funções deles são diferentes e de maior relevância, mas o staff português não aumenta ainda que o negócio o esteja a exigir. todos nos desdobramos a fazer tarefas que não nos competem e estamos todos com ordenados miseráveis que não permite pagar casa, contas e comer.
os clientes da minha empresa são, em cerca de 70%, estrangeiros. ricos, com imenso poder de compra. a empresa para a qual trabalho foi criado por um casal de estrangeiros que viu na borreguice portuguesa uma oportunidade de ganhar milhões utilizando a mão de obra barata que somos. um casal de estrangeiros que declina dar ao seu staff português as mesmas regalias que oferece aos estrangeiros.
o nosso país é vendido como um género de paraíso com óptimas praias e comida, estilo de vida calma e maior qualidade de vida. para quem exactamente??! a califórnia da europa, "diz ela" onde até temos o nosso próprio "silicon valley" (oeiras). o país que atrai empresas multinacionais e que cria postos de trabalho com a nossa mão de obra barata. somos um país de call centres, trabalhamos em cubículos sem ver a luz do dia mas desde que trabalhemos para a google ou microsoft, vale a pena. custa-me imenso andar pelas ruas da capital (e não só) e não ouvir português. custa-me já não existirem mercearias como as que conhecemos mas em cada canto encontramos corredores e pequenas lojas a que chamam mini mercados e que vendem um pouco de tudo a preços elevados!
assusta-me imenso pensar no futuro. assusta-me as pessoas pensarem que isto é normal. assusta-me que não lutem nem se rebelem contra isto tudo. os últimos dois anos foram uma prova de como somos ignorantes, crédulos e demasiado maleáveis. como facilmente nos separam como povo que tem os mesmos interesses básicos.
perdoem-me mas este é o meu manifesto contra esta modernidade e liberalismo que estão longe de se parecerem com progresso. esta sociedade doentia com falta de identidade e direcção. esta corrida louca por dinheiro que nos cega e nos faz agir de forma desumana; a loucura por gastar e consumir e comer fora e repetir ainda que não haja possibilidade financeira para isso. cada vez mais trânsito, cada vez menos civismo e preocupação com as pessoas à nossa volta. noticiários que não são mais que pura propaganda. não há discussão. há pessoas que são caladas e caluniadas, vidas destruídas por terem um pensamento diferente. televisão de lixo que nos entorpece com entretenimento oco. manipulação da língua! já viram como as palavras têm sido distorcidas e cujas definições têm vindo a mudar consoante a narrativa que nos querem vender?
que obsessão é esta com a praia e concentrar tudo na costa enquanto o interior definha. porque não criar oportunidade e postos de emprego nas cidades mais interiores. ajudar empresas portuguesas em vez de atrair ainda mais call centres?
e produção?! porque associamos (expliquem se puderem, por favor, porque não compreendo) produção a países mais pobres? porque razão não somos auto-suficientes? não haverá mesmo capacidade?
por acharem que têm poder de compra as pessoas estão loucas e acham que podem prejudicar os projectos dos outros. acham que porque estão a pagar podem ser mal educadas e tratarem os outros como seres inferiores. o cliente está louco! e não tem a razão que costumava ter. vivemos numa autêntica torre de babel. ninguém se compreende apesar de estarmos a falar a mesma língua. toda a gente quer ser compreendida sem se dar ao trabalho de compreender os outros.
onde está o sentido de comunidade? porque achamos que temos de reprimir a nossa cultura e aquilo que nos define? que vergonha é esta que de repente nos assomou?
perdoem-me mas este é o meu manifesto contra a década de 20 do século 21. porque ainda agora começou e prenuncia a loucura que ainda está para vir.